Sophia de Mello Breyner Andresen foi uma das mais importantes poetisas portuguesas do século XX. Foi a primeira mulher portuguesa a receber o mais importante galardão literário da língua portuguesa, o Prémio Camões, em 1999.
INSCRIÇÃO
Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Mar
De todos os
cantos do mundo
Amo com um
amor mais forte e mais profundo
Aquela praia
extasiada e nua,
Onde me uni
ao mar, ao vento e à lua.
II
Cheiro a
terra as árvores e o vento
Que a
Primavera enche de perfumes
Mas neles só
quero e só procuro
A selvagem
exalação das ondas
Subindo para
os astros como um grito puro.
in Poesia,
1944
Sophia de Mello Breyner Andresen
POEMA
A minha vida é o mar o abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita
Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará
Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento
A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto
Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento
E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada
Mar Sonoro
Mar sonoro,
mar sem fundo, mar sem fim.
A tua beleza
aumenta quando estamos sós
E tão fundo
intimamente a tua voz
Segue o mais
secreto bailar do meu sonho.
Que momentos
há em que eu suponho
Seres um
milagre criado só para mim.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Liberdade
Aqui nesta praia
onde
Não há
nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há
somente
Ondas
tombando ininterruptamente,
Puro espaço
e lúcida unidade,
Aqui o tempo
apaixonadamente
Encontra a
própria liberdade.
Sophia de Mello Breyner Andresen
A presença
dos céus não é a Tua, embora o vento venha não sei donde. Os oceanos não dizem
que os criaste, nem deixas o Teu rasto nos caminhos. Só o olhar daqueles que
escolheste nos dá o Teu sinal entre os fantasmas.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Mesmo que eu
morra o poema encontrará
Uma praia
onde quebrar as suas ondas
E entre
quatro paredes densas
DE funda e
devorada solidão
Alguém seu
próprio ser confundirá
com o poema
do tempo.
Sophia de Mello Breyner Andresen
BEBIDO O LUAR
Bebido o
luar, ébrios de horizontes,
Julgamos que
viver era abraçar
O rumor dos
pinhais, o azul dos montes
E todos os
jardins verdes do mar.
Mas
solitários somos e passamos,
Não são
nossos os frutos nem as flores,
O céu e o
mar apagam-se exteriores
E tornam-se
os fantasmas que sonhamos.
Por que
jardins que nós não colheremos,
Límpidos nas
auroras a nascer,
Por que o
céu e o mar se não seremos
Nunca os
deuses capazes de os viver.
Sophia de Mello Breyner Andresen
QUE NENHUMA ESTRELA
QUEIME O TEU PERFIL
Que nenhuma estrela
queime o teu perfil
Que nenhum
deus se lembre do teu nome
Que nem o
vento passe onde tu passas.
Para ti
criarei um dia puro
Livre como o
vento e repetido
Como o
florir das ondas ordenadas.
Sophia de Mello Breyner Andresen
UM DIA
Um dia,
gastos, voltaremos
A viver
livres como os animais
E mesmo tão
cansados floriremos
Irmãos vivos
do mar e dos pinhais.
O vento
levará os mil cansaços
Dos gestos
agitados irreais
E há-de
voltar aos nosso membros lassos
A leve
rapidez dos animais.
Só então poderemos
caminhar
Através do
mistério que se embala
No verde dos
pinhais na voz do mar
E em nós
germinará a sua fala.
Sophia de Mello Breyner Andresen
MAR
Mar, metade
da minha alma é feita de maresia
Pois é pela
mesma inquietação e nostalgia,
Que há no
vasto clamor da maré cheia,
Que nunca
nenhum bem me satisfez.
E é porque
as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes
se levantam outra vez,
Que após
cada queda caminho para a vida,
Por uma nova
ilusão entontecida.
E se vou
dizendo aos astros o meu mal
É porque
também tu revoltado e teatral
Fazes soar a
tua dor pelas alturas.
E se antes
de tudo odeio e fujo
O que é
impuro, profano e sujo,
É só porque
as tuas ondas são puras.
Esperança e
desespero de alimento
Me servem
neste dia em que te espero
E já não sei
se quero ou se não quero
Tão longe de
razões é meu tormento.
Mas como
usar amor de entendimento?
Daquilo que
te peço desespero
Ainda que mo
dês - pois o que eu quero
Ninguém o dá
senão por um momento.
Mas como és
belo, amor, de não durares,
De ser tão
breve e fundo o teu engano,
E de eu te
possuir sem tu te dares.
Amor
perfeito dado a um ser humano:
Também morre
o florir de mil pomares
E se quebram
as ondas no oceano.
NAVIO NAUFRAGADO
Vinha de um
mundo
Sonoro,
nítido e denso.
E agora o
mar o guarda no seu fundo
Silencioso e
suspenso.
É um
esqueleto branco o capitão,
Branco como
as areias,
Tem duas
conchas na mão
Tem algas em
vez de veias
E uma medusa
em vez de coração.
Em seu redor
as grutas de mil cores
Tomam formas
incertas quase ausentes
E a cor das
águas toma a cor das flores
E os animais
são mudos, transparentes.
E os corpos
espalhados nas areias
Tremem à
passagem das sereias,
As sereias
leves dos cabelos roxos
Que têm
olhos vagos e ausentes
E verdes
como os olhos de videntes.
AS ONDAS
As ondas
quebravam uma a uma
Eu estava só
com a areia e com a espuma
Do mar que
cantava só para mim.
EXÍLIO
Quando a
pátria que temos não a temos
Perdida por
silêncio e por renúncia
Até a voz do
mar se torna exílio
E a luz que
nos rodeia é como grades
Sophia de Mello Breyner Andresen
ESTRANHA NOITE
Estranha noite velada,
Sem estrelas e sem lua.
Em cuja bruma recua
Fantasma de si mesma cada imagem
Jaz em ruínas a paisagem,
A dissolução habita cada linha.
Enorme, lenta e vaga
A noite ferozmente apaga
Tudo quanto eu era e quanto eu tinha
E mais silenciosa do que um lago,
Sobre a agonia desse mundo vago,
A morte dança
E em seu redor tudo recua
Sem força e sem esperança.
Tudo o que
era certo se dissolve;
O mar e
praia tudo se resolve
Na mesma
solidão eterna e nua.
PIRATA
Sou o único
homem a bordo do meu barco.
Os outros
são monstros que não falam,
Tigres e
ursos que amarrei aos remos,
E o meu
desprezo reina sobre o mar.
Gosto de
uivar no vento com os mastros
E de me
abrir na brisa com as velas,
E há
momentos que são quase esquecimento
Numa doçura
imensa de regresso.
A minha
pátria é onde o vento passa,
A minha
amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo
é o rastro que ficou das aves,
E nunca
acordo deste sonho e nunca durmo.
O PRIMEIRO HOMEM
Era como uma
árvore da terra nascida
Confundindo
com o ardor da terra a sua vida,
E no vasto
cantar das marés cheias
Continuava o
bater das suas veias.
Criados à
medida dos elementos
A alma e os
sentimentos
Em si não
eram tormentos
Mas graves,
grandes, vagos,
Lagos
Reflectindo
o mundo,
E o eco sem fundo
Da ascensão
da terra nos espaços
Eram os
impulsos do seu peito
Florindo num
ritmo perfeito
Nos gestos
dos seus braços.
Sophia de Mello Breyner Andresen
DERIVA
VIII
Vi as águas
os cabos vi as ilhas
E o longo
baloiçar dos coqueirais
Vi lagunas
azuis como safiras
Rápidas aves
furtivos animais
Vi prodígios
espantos maravilhas
Vi homens
nus bailando nos areais
E ouvi o
fundo som das suas falas
Que nenhum
de nós entendeu mais
Vi ferros e
vi setas e vi lanças
Oiro também
à flôr das ondas finas
E o diverso
fulgor de outros metais
Vi pérolas e
conchas e corais
Desertos
fontes trémulas campinas
Vi o rosto
de Eurydice das neblinas
Vi o frescor
das coisas naturais
Só do Preste
João não vi sinais
FERNANDO PESSOA
Teu canto
justo que desdenha as sombras
Limpo de
vida viúvo de pessoa
Teu corajoso
ousar não ser ninguém
Tua
navegação com bússola e sem astros
No mar
indefinido
Teu exacto
conhecimento impossessivo.
Criaram teu
poema arquitectura
E és
semelhante a um deus de quatro rostos
E és
semelhante a um de deus de muitos nomes
Cariátide de
ausência isento de destinos
Invocando a
presença já perdida
E dizendo
sobre a fuga dos caminhos
Que foste
como as ervas não colhidas.
Sophia de Mello Breyner Andresen
ESPERO
Espero
sempre por ti o dia inteiro,
Quando na
praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas
as coisas o agoiro
De uma
fantástica vinda.
LUSITÂNIA
Os que
avançam de frente para o mar
E nele
enterram como uma aguda faca
A proa negra
dos seus barcos
Vivem de
pouco pão e de luar
BARCO
Margens
inertes
abrem os
seus braços
Um grande
barco no silêncio parte.
Altas
gaivotas nos ângulos a pique,
Recém-nascidas
à luz, perfeita a morte.
Um grande
barco parte
abandonando
As colunas
de um cais ausente e branco.
E o seu
rosto busca-se emergindo
Do corpo sem
cabeça da cidade.
Um grande
barco
desligado parte
Esculpindo
de frente o vento norte.
Perfeito
azul do mar, perfeita a morte
Formas
claras e nítidas de espanto.
MAR SONORO
Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem
fim,
A tua beleza aumenta quando estamos
sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu
sonho,
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.
MADRUGADA
Um leve tremor prende a madrugada
Quando mar e céu na mesma cor se
azulam
E são mais claras as luzes dos barcos
pescadores
E para além de insânias e rumores
A nossa vida se vê extasiada
MUSA ENSINA-ME O CANTO
Musa
ensina-me o canto
Venerável e
antigo
O canto para
todos
Por todos
entendido
Musa
ensina-me o canto
O justo
irmão das coisas
Incendiador
da noite
E na tarde
secreto
Musa
ensina-me o canto
Em que eu
mesma regresso
Sem demora e
sem pressa
Tornada
planta ou pedra
Ou tornada
parede
Da casa
primitiva
Ou tornada o
murmúrio
Do mar que a
cercava
(Eu me
lembro do chão
De madeira
lavada
E do seu
perfume
Que
atravessava)
Musa
ensina-me o canto
Onde o mar
respira
Coberto de brilhos
Musa
ensina-me o canto
Da janela
quadrada
E do quarto
branco
Que eu possa
dizer como
A tarde ali
tocava
Na mesa e na
porta
No espelho e
no corpo
E como os
rodeava
Pois o tempo
me corta
O tempo me
divide
O tempo me
atravessa
E me separa
viva
Do chão e da
parede
Da casa
primitiva
Musa
ensina-me o canto
Venerável e
antigo
para prender
o brilho
Dessa manhã
polida
Que poisava
na duna
Docemente os
seus dedos
E caiava as
paredes
Da casa
limpa e branca
Musa
ensina-me o canto
Que me corta
a garganta
HOMENAGENS A SOPHIA
2003 - Estátua de autoria do escultor Francisco Simões no Parque dos Poetas em Oeiras |
Busto em homenagem a Sophia de Mello Breyner Andresen no Miradouro da Graça. Réplica do busto criado pelo escultor António Duarte em 1950, inaugurado em 2 de Julho de 2009. |
2011 - Busto na Quinta do Campo Alegre ou Casa dos Andresen em Lordelo do Ouro, actual Jardim Botânico do Porto. |
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