terça-feira, 25 de dezembro de 2018

‘In memoriam’

Faz agora um ano, o Sr. Marques andava feliz, dando os últimos retoques na sua última criação, uma estrela com cauda feita de materiais reciclados e eletrificada por dentro. Não se lhe via o sorriso por detrás do bigode hirsuto, mas os olhos lançavam impercetíveis faíscas de riso. A estrela continua cá, erguida, viva, acesa, à entrada do bloco principal… mas o Sr. Marques já não se encontra. Jamais se voltará a sentir a sua presença leve e a sua cortesia afável. 

Que triste é a nossa condição humana, que desesperante é este “caminho entre dois túmulos”. Mas a sua luz, a sua incomensurável ternura, permanecerão, nesta estrela ou noutra que brilhe agora acima de nós.


Como diz o poeta, “temos braços longos para os adeuses” e “para a esperança no milagre” fomos feitos, e por isso, da morte renasceremos, “imensamente”.

Ao Sr. Marques - que não sendo professor, dava lições de bondade - dedicamos este poema.
                                                   

Poema de Natal


Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.


Vinicius de Moraes, in 'Antologia Poética'

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